Olho Cego No Horizonte

Aqui está um trecho do livro para voces.
Abraços
Pag 17 a 22
.
A grande e vigiada mansão do General Batalha tem sua frente
deitada sobre pedras úmidas, onde explodem as ondasdo mar.
É tão suntuosa, e debruça-se sobre um canto de beleza tão
comovente, que é possível duvidar de sua existência. Difícil
imaginar que efeito toda essa poesia provoca no Genenal.
Profundos conflitos, decerto. No início da tarde, empregados
circulam entre o jardim e os cômodos da casa, e muitos deles
ocupam-se com a arrumação do salão principal. Um homem
jovem, de rosto ainda infantil, espalha-se numa larga poltrona
encaixada provisoriamente no vão sob a escada., com os olhos
voltados para o nada e as orelhas cobertas por fones que o
fazem movimentar suavemente os braços, os ombros, o
pescoço, as mãos, o tronco. Lucas levanta-se para esticar e
sacudir melhor o corpo bem estruturado, abrindo para
ninguém um sorriso indecifrável. Ao olhá-lo assim, os presentes
não resistem ao sabor dos comentários. Esse menino vive em
outro mundo! Mas ele não ouve, sequer percebe as vozes que
se perdem. Passeia os olhos pelo ambiente, tudo tão distante
de sua alma, enquanto a guitarra explode profana em seus
ouvidos. O celular vibra e ele atende de imediato.

- Oi. Tudo bem. Certo. Te encontro aí em quinze minutos.
Lucas muda. Concentra-se no que tem que fazer, troca a
dança por movimentos retos e objetivos, tira o fone, põe os
óculos escuros, arrasta a pasta e a gravata. Para negociar, faz
questão da gravata. Sempre foi assim, desde que começou
nisso. Nada de recibos, nem cheques nominais. E nada de
perguntas. Apenas o disquete em troca do dinheiro, e bem
vivo. Operação rápida, cirúrgica. Joga-se no conversível preto,
o cavalo de Butch, e enquanto dirige, confere com uma das
mãos a mercadoria do dia no bolso, mantendo os olhos
apontados para a estrada.

Há muita gente no saguão ao final do espetáculo. Pessoas
bem vestidas e ansiosas transitam para todos os lados, cada
um com seus motivos, enquanto outras se aglomeram em
cantos improvisados, esbarrando em baldes e compensados.
O ambiente cheira a suor e tabaco, e os artistas misturam-se a
repórteres, organizadores, contra-regras e toneladas de
material de cena que vão sendo empilhados por homens
truculentos, indiferentes ao glamour. Os atores cruzam
furtivamente o saguão em direção aos camarins, livrando-se
de seus grampos e perucas, chapéus e luvas, como quem
espanta mosquitos. É possível ver ainda alguns espectadores
retardatários num grupo excitado e falante junto à cortina do
palco, agora vazio. Na sala reservada à imprensa, um tripé
apóia o cartaz oficial da Mostra Internacional de Teatro
convidando a todos para a festa de encerramento, na noite
seguinte.

A Nação está em colapso, não se compra nem se vende
mais nada e o fedor de mais um golpe militar já se faz perceber.
As coisas estão ainda mais tensas por aqui, onde nasce o esboço
do que acontece nessa República Democrática sul-americana,
frágil, oscilante, típica. O Governo tenta, aos trancos, adaptarse
às últimas regras do jogo cujo tabuleiro está bem longe, do
outro lado do continente. É um mau presságio para o início
do século. Branco não gosta de pensar demais sobre isso, o
assunto faz com que perguntas sem respostas venham como
avalanche, dando à boca um gosto amargo de ressaca e fazendo
o peito se contrair dolorosamente. .Que merda de mundo é
esse!. Ele sai do chuveiro e veste o robe enquanto caminha
pelo quarto claro, chapado pela luz da tarde que entra pelas
vidraças. O telefone toca sem trégua sobre o lençol amassado
e Branco seca o rosto corado.

- Alô.
- E aí, Vicente Branco...
Lucas segura o pequeno telefone colado à orelha, tendo à
frente a rodovia.
- Lucas?
- Interrompi alguma coisa?
Ele fala em seu tom típico, quase indiferente, e Branco ajeitase
para ouvir melhor.
- Como vai, cara? Alguma novidade?
- É possível. Ainda não sei.
- Putz...
- Estou marcando um churrasco de porco para amanhã,
e fazemos questão da sua companhia. Todos os nossos amigos
vão estar lá.

Branco gargalha furtivamente.
- Amigos... Gostei dessa. É o segundo churrasco em
quinze dias, assim eu vou acabar engordando. Alguma
novidade importante?
- Põe importante nisso.
- Tem a ver com esses boatos?
- É, tem tudo a ver. Mas não dá para falar agora, a gente
conversa melhor amanhã. Às dez.
- Na casa do Papai Ganso?
- É minha casa também. Fica frio, ele não vai estar lá.
- Certo, certo... Fechado, dez horas, então. Eu adoro
madrugar.
- Não é tão cedo assim, não para negociar. Vê se não se
atrasa.
- Não vou me atrasar.

Os repórteres logo fazem da mulher o centro das atenções.
Julia Castro é menos conhecida como atriz que como
produtora, por conseguir tirar leite de pedra nas sempre
delicadas negociações entre artistas e patrocinadores. Veio ao
País com sua Companhia, a que acaba de se apresentar na
controvertida Mostra de Teatro. Julia tem o corpo estreito e
musculoso, e muito elegante. Tem também a cor pálida e os
cabelos absolutamente pretos, e o rosto suado e com restos
de maquiagem dão-lhe uma atmosfera dramática e
intimidadora. Entre luzes, gravadores, microfones e fios, a
sabatina segue.

- Senhorita Castro, antes de mais nada gostaria de...
- Julia Castro.
- Está bem, como quiser. Julia, como você tem visto o...
- Julia Castro. É melhor.
Ela se vira para ouvir o que Mateus grita da porta do
camarim, enquanto alguém põe em sua mão uma garrafa com
água. E mata calmamente a sede, sem ceder à ansiedade dos
que esperam.

O dia está abafado, nuvens pesadas começam a surgir, e
Lucas ultrapassa o volvo, está sempre um pensamento adiante.
O calor não é bastante para incomodá-lo em seu terno cinza,
impecavelmente assentado sobre a ossatura larga. Ele tem uma
crina farta, feita de cabelos escuros e lisos, brilhantes à luz do
sol. Os traços do rosto parecem esculpidos em madeira,
marcas do berço indígena. Mas essa é uma longa estória, uma
das estórias do General Batalha em suas aventuras pelas matas
afrodisíacas de seu verdejante e irrigado reino tropical. O local
combinado é um meio-fio no meio do nada, onde J.C. e seus
cães de guarda já estão à espera.

- Como vai, garoto?
Lucas abaixa o vidro da janela e firma o punho para um
rápido aperto de mão. Tira o disco do porta-luvas deixandoo
à vista, mas ainda não o entrega. J.C. percebe e sorri. Conhece
o ritual. Primeiro a grana. Põe o envelope recheado na sua
mão, e o dito garoto confere o pagamento sem cerimônias.
Negócio é negócio. Tudo certo. E enquanto libera a
encomenda, faz o convite.

- Jota, churrasco de porco amanhã. Às dez.
J.C. o encara sério, com aquele rosto vivido de quem não
relaxa nunca, de quem dorme de olhos abertos. Força do
hábito. Do ofício. Parece querer dizer algo, mas não diz.

- Está bom. Pode me esperar.
- Legal. Então, até.

Eles trocam um cumprimento mudo e Lucas se vai, não
sem antes rever da estrada o fantasmagórico armazém, decerto
entupido de cocaína.



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